terça-feira, 13 de março de 2007

Resposta ao artigo da Veja II

Pedagogia da Confusão ou "Os erros de juventude de Ioschpe"
Você pode ser jovem, mas não precisa, por isso, não saber das coisas. A não ser que esteja falando de modo falso, por ser mau caráter. Qual das duas opções é a do jovem Gustavo Ioschpe?
Caso eu fosse um anti-americanista eu diria que sua formação nos Estados Unidos é que é a culpada dele não saber o que fala sobre educação em geral e sobre educação brasileira em especial. Mas não sou anti-americanista. Ao contrário, sou um filósofo que tem tudo a ver com os Estados Unidos. Por isso mesmo posso desmentir o jovem gaúcho que, em poucos anos de estudo, acha que pode fazer afirmações descuidadas na imprensa brasileira a respeito de educação. E, de fato, vou dizer o que ocorre com ele: os Estados Unidos possuem grandes filósofos, grandes cientistas mesmo, grandes músicos e atores. Todavia, quando seus economistas pensam sobre educação o que produzem é um rol de frases desconexas que dariam vergonha a um John Dewey. Aliás, em geral os economistas americanos são muito pouco informados sobre como lidar com a educação de um modo qualitativo, e eles têm uma velha ligação com a corrente de pensadores dos Estados Unidos que, desde 1957, quis retirar a educação americana de sua influência do liberalismo radical de Dewey. Os norte-americanos inteligentes do campo educacional que, enfim, não são ligados à economia, mas à filosofia da educação, não aprendem sobre o tema da educação mais nada que vem dos Estados Unidos quando o pacote é produzido por tecnocratas e economistas. Ao contrário, aprendem conosco. Por isso o livro Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, já ultrapassou nos Estados Unidos a vigésima edição. Todavia, nós aqui, só somos anti-americanos para rechaçar o que é bom dos Estados Unidos. Quando aparece o que devíamos descartar, nós absorvemos. E a moda agora é ouvir um Gustavo Ioschpe falar em nome do Banco Mundial coisas do seguinte tipo. Vejam:
“Dos estudos mais sérios sobre o assunto, depreende-se justamente o contrário: eles mostram que o professor brasileiro está longe de ser discriminado no mercado de trabalho. Esses profissionais recebem, no Brasil, o esperado para pessoas com as suas qualificações e com a mesma rotina de trabalho. Se a classe docente fosse realmente injustiçada, o magistério não seria uma das carreiras mais populares do país, com mais de 2 milhões de profissionais – número que só faz crescer.” (Gustavo Ioschpe, na Veja – podia ser outra revista?)
Paulo Renato e Delfim Neto são economistas. Quando eles puseram a mão na educação – o primeiro diretamente, o segundo de modo indireto – todos nós sabemos o que ocorreu. Houve privatização indevida, massificação sem cálculo e piora do sistema. Agora, mais essa novidade: um economista do Banco Mundial, extremamente jovem para ter as certezas que tem, começa a falar aos mais velhos, que o escutam por estranhas razões. Ele estudou, estudou, estudou e não aprendeu algo que os americanos ensinam bem: lógica. Ou aprendeu e usou o sofisma acima por má fé? Vamos desmontar o sofisma.
Vejam só: ele afirma que no Brasil os professores recebem o esperado, segundo o tipo de qualificação que eles possuem. Ele afirma, também, que se o magistério fosse injustiçado, não haveria crescimento da profissão, e no entanto, segundo ele, a carreira do magistério é a “mais popular no país”. A “lógica” do jovem é a seguinte:
Enunciado 1: o magistério recebe o merecido – ele quem diz isso, e ele assume como verdade.Enunciado 2: o magistério é a carreira mais popular no Brasil, só cresce – ele quem diz isso, e ele assume como verdade.Enunciado 3: caso 1 não fosse verdade e, então, o magistério poderia ser visto como injustiçado, então 2 não ocorreria, ou seja, as pessoas não procurariam a carreira do magistério.
Para um economista, o “raciocínio” acima mostra só uma coisa: ele está aquém da fase das operações lógicas, registrada por Piaget como uma idade mental de mais ou menos nove anos. Pois como que ele pode dizer que o fato de uma carreira não ser atraente, do ponto de vista financeiro, é o que determina seu crescimento em número de adeptos ou não? Qualquer exemplo poderia mostrar que isso é um erro crasso. Por exemplo: há o adágio popular que diz que “o crime não compensa” e, de fato, as estatísticas mostram que os criminosos, na sua maioria, não usufruem do que roubam; e os criminosos já assistiram bastante os filmes que mostram isso, mas isso não determinou nunca, em tempo algum e em lugar algum o aumento ou não do número de pessoas que pegaram a carreira do crime. Outro exemplo: o “boom” da informática no Brasil criou uma “bolha”. Em dez anos apareceram profissionais de informática no mercado e este não os absorveu para as funções que eles se formaram. Ainda assim, continua a ser uma profissão buscada por muitos jovens. E o número de advogados que o país forma? Eles vão advogar, vão passar no exame da OAB e vão viver da advocacia? Veja, então, o vestibular da UFSCar para a carreira de “Imagem e Som”. É concorridíssimo. É o vestibular mais concorrido do país. No entanto, o profissional de “Imagem e Som” vai trabalhar onde? Ora, os jovens não são tontos, eles sabem que estão optando por algo que não tem emprego! Mas eles estão optando por motivos outros que o financeiro – ao menos no momento. Eu poderia multiplicar os exemplos em que a determinação de uma escolha profissional ou, melhor dizendo, a escolha da busca de um diploma superior, em um país não está correlacionada com o que é mais atraente do ponto de vista financeiro. As pessoas fazem o que podem, não o que querem – todos nós sabemos isso. Todos, menos o Gustavo Ioschpe. E no caso do Brasil, bastaria estudar um pouco nossa história (ai de mim!) e ver como que a chamada “carreira do magistério” foi enraizada em nossa cultura feminina, por um lado, e como que no Brasil o diploma de professor (de Pedagogia, principalmente) é requisitado para tudo, não necessariamente para ser professor, por outro lado. Além disso, o diploma de Pedagogia é um do*****ento tido como “fácil”, exatamente pelo fato do curso em questão ter sido transformado em um curso massificado e descaracterizado, como o que está acontecendo agora, guardada as especificidades, com Direito e Administração. Só há uma única coisa que faz com que exista relação entre esses dois elementos, êxito financeiro e escolha de profissão: o cérebro vazio de quem imagina que possa haver relação. Ou o jovem economista fez o sofisma, mesmo sabendo que qualquer um iria vê-lo como um tolo, por ser uma pessoa má intencionada? Não! Não, não creio. Creio, mesmo, que é um caso de incompetência mesmo. E não me espanta que ele se apresente com títulos americanos – sei bem como esses títulos são tirados nos Estados Unidos e como é o tal “mestrado” lá. Gosto dos Estados Unidos e conheço a vida americana em detalhes. Títulos americanos não me enganam (nem os títulos franceses ou alemães, cada país tem o seu “jeitinho brasileiro”). Não estou dizendo que não estudou. Pode ter estudado sim – mais ou menos. Mas estudou a coisa errada e do modo errado. Economia? Não, não, isso é a parte mais fraca dele. Ele não tem raciocínio lógico correto, é capenga.
Não acredito em “teoria da conspiração”. Não acho que o Banco Mundial e o “imperialismo” pegaram o jovem economista como agente, propositalmente. Todavia, ele está servindo, sim, de agente. Não do “imperialismo”, é claro, mas da confusão. Ele é um agente da confusão. Ele, com sua formação acadêmica fraca, está servindo aos que querem negar que no Brasil há um descuido com o salário dos professores e, pior, um descuido que é de fato um ponto central na nossa política educacional. Então, nesse sentido, ele, querendo ou não, é uma pessoa que causa desgraça – é uma erva daninha. Ainda que de modo não intencional, ele serve exatamente aos que, no Brasil e no Exterior, preferem que nosso país continue como está em educação. Caso o MEC venha a escutar o jovem, pode querer propor a tal “capacitação em exercício”, ou seja, fazer com que os professores, já humilhados salarialmente, venham a gastar os fins de semana em cursinhos maçantes.Mas, vamos voltar, ainda, ao “raciocínio” do Gustavo. Os enunciados que ele coloca em jogo são da cabeça dele. Ele diz que tirou de “estudos”, mas não cita e, quando citar, duvido que vamos poder confiar. Pois veja o modo como ele enuncia números, que é o modo obliquo, para criar confusão:
“E nessa conta os docentes brasileiros aparecem numa situação mais favorável: enquanto eles recebem salário 56% superior à média nacional, nos países mais ricos a remuneração dos professores é 15% menor” (ainda o mesmo Gugu, na mesma Veja)
O que ele quer dizer? Ele faz um tortuoso esquema para dizer que os países mais ricos pagam menos aos seus professores do que o Brasil, proporcionalmente em relação ao salário médio nacional. Mas qual a razão dele, um economista, não ter fugido só da aula de lógica, mas também da aula de história? Sim, pois se ele tivesse estudado história (de lógica, já vimos, ele é ruim), ele não poderia comparar os países desenvolvidos conosco. Pois os países desenvolvidos já são desenvolvidos. Em geral, eles acabaram (ou reduziram muito) com o analfabetismo antes do final do século XX. Somente os Estados Unidos é que completou tal façanha no século XX. A Alemanha, por exemplo, antes mesmo de existir como país, tinha 0, 003% de analfabetos.
Quando olhamos os gastos de um país com a sua educação, temos de fazer isso olhando a história e vendo, também, a produção da literatura pedagógica do país. Qual a razão de tal comparação? Historicamente, países que possuem uma economia que não está em crise profunda (ainda que nunca seja uma economia em crescimento), e que possuem o problema educacional básico não resolvido, produzem muita literatura pedagógica. Os germânicos produziram isso nos séculos XVIII e XIX. Os Estados Unidos tiveram o maior filósofo da educação mundial do pré I Guerra – John Dewey. O Brasil deu ao mundo a produção de Paulo Freire após a Segunda Guerra. Vejam: isso é correlato ao fato do problema educacional ser percebido no país em questão, e o país ter condições, ao menos teórica, de resolvê-lo. Alguns, em tal momento histórico, investem e, então, a teoria e a prática se casam. Foi o que ocorreu na Europa no século XIX e nos Estados Unidos no século XX. Foi o que parecia que ia ocorrer no Brasil antes de 1964. Não é o que ocorreu no Brasil. Não é o que ocorre. Temos teoria, mas nossa prática não anda. E não anda exatamente pelo fato de que nossa teoria é barrada por pessoas como o Gustavo Ioschpe. Todos nós, da filosofia, dizemos: estamos de posse dos métodos, falta agora dinheiro para uma condição de vida boa para os professores e, então, vamos “fazer e acontecer”. Ora, nós, que amassamos o barro da escola pública, lecionando na zona rural e urbana nesse Brasil (coisa que o Gustavo não tem a mínima idéia do que é), sabemos que se o professor brasileiro tiver uma condição de vida um pouco melhor, damos um salto inimaginável. Mas o que acontece? Aparece aí alguém dizendo: não, não, não é essa a questão. Hoje, quem faz esse papel, é o Gustavo.
Gustavo Ioschpe não sabe nada disso, pois é muito menino. Mas eu já vivi bastante e estou há trinta anos pensando a filosofia e a filosofia educação no Brasil, e já passei por muitos momentos onde esse tipo de gente, como ele, é inflado pela mídia para criar confusão. É música nos ouvidos dos dirigentes e dos ricos o que ele fala. Não é à toa que ele apareceu nessa hora e fala o que está falando. Então, ele imagina que o êxito que está tendo, ao ser convidado para falar ali e aqui, é devido ao que ele estudou. Mas ele não estudou. Ele tem uma formação fraca – fica visível isso no sofisma que montou, acima exposto. E seu êxito advém do fato de que está falando o que alguns dirigentes – que não querem investir na melhoria de vida dos professores – querem ouvir. Mas isso passa. No futuro, vamos voltar a ler Paulo Freire, Anísio Teixeira, Monteiro Lobato, Fernando de Azevedo e, enfim, Gustavo Ioschpe desaparecerá. Mas enquanto puder, ele irá fazer estrago. Já apareceram outros iguais a ele no passado. Alguns, tivemos de botar para correr, pois iam acabar de vez com a profissão do magistério caso continuassem a falar.

Paulo Ghiraldelli Jr.“O filósofo da cidade de São Paulo”
Mestre e doutor pela USP em filosofia, mestre e doutor pela PUC-SP em filosofia da educação. Livre docente e Titular em História e Filosofia da Educação pela Unesp. Editor, em Nova Iorque, da Contemporary Pragmatism. Paulo Ghiraldelli Jr., entre tantos livros, publicou em 2007 o Filosofia da Educação (São Paulo: Ática, 2006), e em 2006 o História da educação brasileira (São Paulo: Cortez, 2006). É articulista da Coluna "Olho Grego", em filosofia, da Revista Filosofia, Ciência e Vida, da Revista Flash e, na revista Profissão Mestre, faz a coluna especial "Click Filosofia". É fundador e coordenador do GT-Pragmatismo e filosofia americana da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (ANPOF).

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